O fim dos regimes autoritários e a instauração de democracias neoliberais na América Latina, na virada entre as décadas de 1980 e 90, deu margem ao renascimento cinematográfico em vários países da região, notadamente Argentina, México e Brasil. As razões desse fenômeno (chamado de “Retomada do Cinema Brasileiro” no Brasil) foram diversas, entre elas a explosão de escolas de cinema na Argentina; a privatização dos meios de produção no México; a redistribuição dos recursos da extinta Embrafilme pelo Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro e a introdução da Lei do Audiovisual em 1993, no Brasil (Dennison, Nagib e Shaw 2003). Os efeitos negativos do neoliberalismo nesses e em outros países não tardaram a aparecer e se ampliar com os anos, o mais grave deles, o aprofundamento do abismo entre as classes sociais. Não obstante, o clima de abertura política ofereceu terreno propício para o desenvolvimento e a criatividade no cinema. No Brasil, o resultado foi um salto de dois longas-metragens em 1992, sob o breve mas nefasto governo Collor, para mais de 200 entre 1994 e 2000 (Nagib 2003), passando a seguir a uma média de 100 longas anuais. 2016 marca um recorde de produção cinematográfica no Brasil, com um total de 143 filmes de longa metragem (fonte: Ancine). Em artigo recente na revista britânica Sight and Sound, Robert Koehler (2007) reconhece que os países latino-americanos finalmente ultrapassaram a fase dos “ciclos” cinematográficos, que marcaram sua história, para se tornarem verdadeiras potências regionais no mercado cinematográfico internacional.
O fenômeno numérico na produção foi acompanhado de ampla diversificação. O eixo Rio-São Paulo, dominante na produção passada, deu lugar à regionalização e à consolidação de importantes centros de produção no Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pernambuco, Ceará e outros estados. Recife, capital de Pernambuco, tem se notabilizado não apenas como núcleo de produção e exportação de filmes, mas pela mais recente sensação do cinema brasileiro, Kléber Mendonça Filho, cujo filme O som ao redor estabelece um vínculo surpreendente entre o passado colonial e a especulação imobiliária atual no Brasil.
As cifras animadoras de hoje são um eco longínquo (e algo irônico) da euforia utópica que marcou o início da Retomada do Cinema Brasileiro, com obras fundadoras como Central do Brasil (Walter Salles e Daniela Thomas, 1998) e Baile perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1998) mostrando um nordeste atraente e cheio de cores em lugar do sertão árido e miserável do Cinema Novo. Como apontou Nagib (2006), a curva utópica logo iria despencar com a percepção de que o neoliberalismo era incapaz de combater e mesmo aprofundava problemas estruturais do país, como a favelização, o tráfico de drogas e a corrupção, retratados em marcos como Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002), O invasor (Beto Brant, 2002) e Tropa de Elite I e II (José Padilha, 2007; 2010).
Ao mesmo tempo, o ímpeto de desbravar paisagens recônditas de nossa geografia resultou numa identidade nacional mais complexa, aberta à globalização e a uma variedade de gêneros como o road movie (Diário de motocicleta, Walter Salles, 2004; Viajo porque preciso, volto porque te amo, Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, 2009). Além disso, uma maior participação de mulheres na direção contribuiu para expandir um cenário historicamente dominado por homens, com filmes inaugurais como Carlota Joaquina (Carla Camuratti, 1995) e Um céu de estrelas (Tata Amaral, 1996). Desde então, vertentes experimentais (Crede-mi, Bia Lessa e Dany Roland, 1996; Elena, Petra Costa, 2012) convivem com comédias e blockbusters financiados pela rede Globo de televisão, muitos transformados em seriados (Se eu fosse você, desde 2006; Minha mãe é uma peça, desde 2016).
O pensamento sobre o cinema contemporâneo brasileiro tem buscado entender esses movimentos, constituindo já uma constelação de conceitos e figuras importantes, como “o cinema de novo” (Luiz Zanin Oricchio), “os encontros inesperados e os personagens ressentidos” (Ismail Xavier), “a cosmética da fome” (Ivana Bentes), “a violência como espetáculo” (Esther Hamburger), “o comum e a experiência da linguagem” (César Guimarães), “a má consciência do cineasta” (Fernão Ramos), “a procura do pai” (José Carlos Avellar) e a questão realista no cinema brasileiro (Ramayana Lira, Erly Vieira Jr). Parte da crítica ainda aposta na ideia da novidade, que identifica um Novíssimo Cinema Brasileiro formado por jovens cineastas que se afastam dos modelos estatais de incentivo à produção e exibição e se engajam numa “relação de cumplicidade entre o cinema e o mundo, entre a criação e a vida” (Marcelo Ikeda).
À medida que o século XXI avança, torna-se oportuna a revisão desses conceitos, figuras e diagnósticos, tendo em vista o modo como o cinema, sobre o pano de fundo contraditório do neoliberalismo, vai esculpindo novas representações das viradas políticas e econômicas, das correntes migratórias, das convulsões da vida urbana, do esfacelamento das identidades, da violência e das frentes de resistência. A entrada do Brasil no novo século, marcada por uma vertiginosa ascensão e queda no cenário político e econômico, demanda análises atualizadas. Assim, este dossiê procurará responder à seguinte questão: de que modo o cinema reflete, confronta e se engaja com este cenário de flutuação das tendências políticas, onde as contradições do capital repetem e geram novas formas de opressão, mas também de resistência?
Intitulado O cinema brasileiro na era neoliberal, o dossiê buscará mapear as várias dimensões que a cinematografia brasileira adquire no contexto neoliberal, explorando os modos como a política econômica interfere na ordem da produção, afetando a linguagem, os recortes temáticos, a expressão estética e a tomada de posição dos filmes. Em suma, interessa saber como o cinema brasileiro tem respondido ao projeto neoliberal e em que termos tem participado de e resistido a esse projeto.
O dossiê convida propostas de trabalho relacionadas direta ou indiretamente aos seguintes subtemas:
• Continuidades e rupturas com a tradição do cinema político
• A virada digital e o cinema brasileiro pós-Retomada
• O cinema pró e anti-industrial
• Descentralização da produção
• Movimentos estéticos no cenário democrático
• Emergência, consolidação e ocaso dos gêneros cinematográficos no Brasil
• Minorias e políticas de identidade: gênero, raça, sexualidade na produção do século XXI
• A produção do cânone contemporâneo: os filmes “incontornáveis”
• Crítica e curadoria em diálogo com a realização
• Cineclubes, cinefilia e formas de consumo do filme no Brasil no século XXI
• A formação de um pensamento teórico no cinema brasileiro
• Mulheres e a questão da autoria
Lúcia Nagib é Professora Catedrática de Cinema na Universidade de Reading. É autora dos livros: World Cinema and the Ethics of Realism (Continuum, 2011), A Utopia no Cinema Brasileiro: Matrizes, Nostalgia, Distopias (Cosac Naify, 2006; versão inglesa: Brazil on Screen: Cinema Novo, New Cinema, Utopia, I.B. Tauris, 2007), O Cinema da Retomada: Depoimentos de 90 Cineasatas dos anos 90 (Editora 34, 2002), Nascido das Cinzas: Autor e Sujeito nos Filmes de Oshima (Edusp, 1995), Em Torno da Nouvelle Vague Japonesa (Editora da Unicamp, 1993) e Werner Herzog: O Cinema como Realidade (Estação Liberdade, 1991). É organizadora dos livros: Impure Cinema: Intermedial and Intercultural Approaches to Film (com Anne Jerslev, I.B. Tauris, 2013), Theorizing World Cinema (com Chris Perriam e Rajinder Dudrah, 2011), Realism and the Audiovisual Media (com Cecília Mello, Palgrave, 2009), The New Brazilian Cinema (I.B. Tauris, 2003), Mestre Mizoguchi (Navegar, 1990) e Ozu (Marco Zero, 1990).
Ramayana Lira de Sousa é professora de Estudos de Cinema e Literatura na Universidade do Sul de Santa Catarina, Brasil. Fez pesquisa de pós-doutorado na Universidade de Leeds, Inglaterra e foi Fulbright Scholar-in-Residence. Co-organizou três livros e publicou artigos e capítulos de livros na Argentina, Brasil, Estados Unidos, Inglaterra e Romênia.
Alessandra Soares Brandão é professora e pesquisadora de Cinema na Universidade Federal de Santa Catarina. É vice-presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine) e editora-chefe da ReBeCa (Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual).